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Terra Adentro

Caminheiros nos Vales dos Dedos da Morte · By dreamup

O Mestre Bardo

A topic by dreamup created Dec 26, 2019 Views: 166
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«Os que pensam que mandam nisto tudo gostam muito dos seus muretes e murinhos, tanto que os metem na cabeça das pessoas. Mas eu nasci em cima do muro e daqui nunca mais saí, das fronteiras entre um lado e outro, entre nós e eles, entre humanos, anões e elfos. Nasci filho de uma elfa do rio e de um homem do mar, sou uma ave muito rara. Os meus pais conheceram-se através de uma anã mercadora que conduzia uma caravana nos tempos em que o comércio entre as grandes cidades teve o seu auge. Nunca fui de ficar em casa e por isso viajei muito a ajudar na caravana. Aprendi a ler, escrever e fazer contas com ela, apesar de isso agora só ser permitido a pescadores e mercadores. Devido a tensões entre famílias, os meus pais tiveram de se separar e, a partir daí, só conseguia passar alguns dias por estação com cada um. Da minha mãe aprendi músicas no alaúde para tocar ao meu pai. Do meu pai aprendi canções de marujo para cantar à minha mãe. Das pessoas que se juntavam à caravana aprendi grande parte do que sei, de muitos ofícios e lugares.

 Houve uma noite de viagem que me marcou para o resto da vida. A caravana vinha com muita gente e o acampamento que montamos quase não cabia dentro de uma clareira à beira da estrada. Uma estranha mulher, ruiva de olhos azuis, surgiu pela estrada e pediu para se juntar à fogueira. Pareceu reconhecer vários rostos e fez conversa com alguns viajantes que ficaram surpreendidos por ela saber desde logo de onde vinham e o que lá se passava. Alguém lhe fez uma pergunta e ela, em vez de responder, sorriu e começou a entoar as palavras de uma canção que paralisou de comoção quem a questionava. Um silêncio suspendeu o acampamento e nesse momento toda a gente soube que testemunhava algo de extraordinário. A mulher graciosamente improvisou sublimes variações a partir de uma canção  que era familiar a muitos dos presentes. Fazendo-se entender no dialecto certo, teceu um poema à frente de toda a gente unindo referências ao passado longínquo de cada rosto à volta da fogueira. E cantou sobre mim também. Iluminou as minhas origens como algo nobre e precioso, o total oposto de como eu me sentia na altura.

A misteriosa mulher já não se encontrava no acampamento ao amanhecer. Algumas pessoas sussurraram entre elas que tínhamos sido visitados pelo deus Lugo em forma humana. Nunca soube ao certo o que aconteceu, mas foi nessa noite que decidi o que queria ser. Um bardo como ela. Algum caminho novo teria de encontrar entre carregar caixotes, conviver com criminosos e ser tratado como um pária. Um longo caminho, sem dúvida, mas o sonho de realizar o meu talento manteve-me vivo através de muitas desventuras. 

Para lá das terras de Lugo, o mundo das grandes cidades e dos seus territórios nunca deixou de me surpreender. Gentes de todos os tamanhos e feitios. Passagens para reinos dos mortos, dos sonhos, de demónios, de tempos futuros e passados, de espaços coincidentes ou trocados. Vidas feitas no topo de cascatas flutuantes, nas costas de dragões, debaixo de árvores falantes ou dentro do estômago de um gigante. E a chegada de Terminus só veio virar a mesa ao contrário. Sem as regras impostas pelas velhas teocracias, é impossível prever para onde todas estas histórias se irão virar. 

Sim, porque é tudo acerca de histórias, não é? Sem poderem ler ou escrever, as tradições orais a que eu dediquei toda a minha vida são gerações de sabedoria popular que pode salvar vidas, alegrar corações ou revelar um caminho. Histórias podem também transpor barreiras e unir o povo quando os seus líderes fomentam divisões para mascarar a corrupção que os mantém na mó de cima. A nobreza das Terras de Lugo não se afirmou pelo seu poderio militar, mas a partir do domínio económico exercido por uma classe de pescadores e  mercadores. Estes oportunistas sempre exploraram a vulnerabilidade de quem tenta viver só da terra que tem quando não pode contar com a ajuda de animais. E agora os filhos de novos-ricos como o senhor Grão-Cozinheiro engendraram uma capa de prestígio e predestinação. Querem impor a história deles, no fundo. Mas certamente não têm a benção de Lugo e não podem vir com essa conversa agora que o Terminus espreita do horizonte. Tudo o que lhes resta é festas baratas para entreter o povo e moedas caras para o extorquir. Não vão durar muito tempo.»