«O mar não é um lago gigante. Não há nada a Este das Terras de Lugo como ele. Não muito longe da costa, o oceano perde o fundo e, nesse abismo de água, tenebrosos monstros marinhos marcam território numa inescrutável dança de poder. Para lá do horizonte a Oeste, as cores das ondas e das nuvens confundem-se e partilham reflexos negros, dourados, verdes e azuis. Uma aura violeta, um nevoeiro feito de luz, flutua acima do mar e relâmpagos formam-se espontaneamente fazendo brotar nuvens no céu. Não é um sítio amigável. Os nossos pescadores pagaram com as suas vidas durante séculos para chegarem a um ponto em que embarcar numa expedição marítima não seja uma missão suicida. Séculos de experiência e sofrimento, não é por acaso que a nobreza de Lugo vem do mar. São os nosso heróis.
Por volta de quando eu nasci, tive a boa fortuna de vir ao mundo quando o nosso destino como terra de nobres pescadores se concretizou. O maior mostrengo alguma vez avistado perto da nossa costa, uma criatura gigantesca e imortal, inesperadamente faleceu. O seu cadáver flutuante mudou o nosso mar nas últimas décadas. Novas espécies variadas e suculentas vieram à superfície. Uma vasta extensão de oceano abriu-se durante alguns anos dando-nos grandes excedentes em pesca. Doses inacreditáveis de óleo de Estrengalhau, uma substância esverdeada produzida pela criatura, puderam ser recolhidas.
Também a nossa sociedade mudou bastante durante a minha vida. A velha nobreza militar era uma vergonha para nós, um bando de bêbados, ou pior, um grupo de cultistas que secretamente rezava ao mostrengo para que lhes desse forças em batalha. Mas somos um povo tolerante, e por isso foi com festas e casamentos que uma mudança de liderança se deu. Alguns mercadores de Lugo também aproveitaram o excedente que tivemos para enriquecer estabelecendo os melhores contactos que alguma vez tivemos com as grandes cidades a Leste. As Terras de Lugo são um exemplo de paz e de progresso, especialmente depois das teocracias terem desabado.
Um entendimento com o Imperador de Ébano também só foi possível graças ao talento diplomático de uma nova classe nobre que não está presa ao passado. Neste período conturbado, temos de nos orientar no sentido da ordem e do pragmatismo. Algumas vozes confundidas diriam que é nosso dever ajudar os sobreviventes das grandes cidades, mas isso são ideias perigosas. Vivemos um momento delicado na nossa grande comunidade. Não só devemos ter cuidado com quem vem de fora, mas também com quem reclama da sua justa posição na nossa sociedade. É ou não verdade que, em grande parte, foram homens e não elfos ou anões que morreram no mar por nós? E que culpa temos nós se quem lavra a terra agora não consegue ter a boa vida de quem vai para o mar? E agora querem todos ser pescadores? Não pode ser. Estas famílias mereceram o seu lugar e, a seu tempo, outras também começam a beneficiar da sua riqueza. Além de que não é difícil contrair uma dívida para ter algum dinheiro. E muitas maleitas que antes podiam ser fatais conseguem agora curar-se com algum preparado à base de óleo de estrengalhau. Ninguém pode ter razões de queixa.
Eu próprio sou a prova de que qualquer anão de Lugo pode chegar a um cargo de relevo na nossa comunidade. Não sou pescador nem mercador, venho de uma família de artesãos. Gosto de uma boa comida e, por isso, sempre tentei tornar qualquer receita numa obra de arte, algo que fizesse muito mais do que só nos alimentar. Aprendi também a impor ordem nas cozinhas, a organizar eventos e a fazer amizades com esta nova nobreza que reconhece os meus méritos. Tornei-me assim o cozinheiro oficial de Lugo e o conselheiro pessoal das famílias mais importantes. Por vezes confundem-me com alguém que até poderia ser o Rei de Lugo, mas estas Terras sempre foram governadas por um conselho de nobres e eu sou apenas um seu humilde servidor. Tal como a maré cheia se segue à maré vaza, temos de respeitar a ordem das coisas. Eu limito-me a zelar por todo o fornecimento de comida em Lugo e a garantir que todas as celebrações populares acontecem da melhor maneira. Espero que, no futuro, tenhamos cada vez mais razões para festejar.»